segunda-feira, outubro 24, 2005

MATÉRIAS PRESIDENCIAIS





A não criação de riqueza que sustente o nível de vida actual dos portugueses e o legítimo direito de melhoria do mesmo, constitui o principal problema do sistema e do regime políticos em que Portugal se encontra.
O prolongamento desta situação de impasse tem efeitos imprevisíveis mas tocará sem qualquer dúvida nos fundamentos da independência do país.
A próxima eleição presidencial torna-se, por isso, num desafio relevante aos candidatos, quanto à visão que demonstrarão no sentido de proporem uma resposta adequada à dimensão do problema.
Neste âmbito expõe-se de seguida o conjunto das questões centrais que não poderão deixar de ser abordadas nos manifestos/programas dos candidatos.
A Constituição estabelece que o Estado tem a obrigação de assegurar a defesa nacional e que um dos objectivos da defesa nacional é garantir a independência nacional contra qualquer ameaça externa (art. 273º).
E consagra como uma das tarefas fundamentais do Estado a criação, entre outras, das condições económicas que promovam a independência nacional (art. 9º).
O texto constitucional, aliás, prevenindo os efeitos negativos para a independência nacional que podem advir da actividade económica, ao declarar que incumbe prioritariamente ao Estado desenvolver as relações económicas com todos os povos, ressalva expressamente a salvaguarda da independência nacional e os interesses dos portugueses e da economia do país (art. 81º).
Mais, em claro reforço dessa prevenção, a Constituição determina literalmente que a lei disciplinará a actividade económica e os investimentos por parte de pessoas singulares ou colectivas estrangeiras a fim de defender a independência nacional (art. 87º).
Por outro lado e segundo a Lei de Defesa Nacional e das Forças Armadas, a política de defesa nacional consiste no conjunto coerente de princípios, objectivos, orientações e medidas adoptados para assegurar a defesa nacional (art. 4º) e tem natureza global, abrangendo uma componente militar e componentes não militares (art. 6º).
E no âmbito desta Lei, competindo a condução da política de defesa nacional ao Governo (art. 7º), o Ministério da Defesa Nacional é o departamento governativo da administração central ao qual incumbe preparar e executar a política de defesa nacional (art. 34º).
Ainda dentro da referida Lei se estabelece que o Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) é aprovado pelo Governo no contexto da política de defesa nacional, sendo o mesmo entendido como a definição dos aspectos fundamentais da estratégia global do Estado adoptada para a consecução dos objectivos da política de defesa nacional (art. 8º).
Acontece que, entre os objectivos permanentes da política de defesa que lhe conferem carácter nacional, encontra-se a contribuição para o desenvolvimento das capacidades materiais da comunidade nacional, de modo a que possa prevenir ou reagir pelos meios adequados a qualquer ameaça externa (art. 5º).
Foi por certo neste enquadramento que Mota Pinto, em 1984, no debate parlamentar que decorreu aquando da aprovação do primeiro CEDN, referiu que “o conceito de defesa nacional não pode deixar de afirmar a imperatividade de se criarem e de se incrementarem as condições sociais de independência, através do desenvolvimento das forças produtivas e criadoras, nomeadamente do desenvolvimento industrial, científico e tecnológico nos sectores mais carecidos e relevantes em termos estratégicos, em ordem a diminuir, na medida do possível, a dependência em relação ao exterior” (in Defesa Nacional e Forças Armadas, Caderno XVI, Lisboa, CDI/MDN, p. 4).
Esta perspectiva - centrada no desenvolvimento das forças produtivas e criadoras, nomeadamente do desenvolvimento industrial, científico e tecnológico - veio, de resto, a ficar consagrada como Grande Área de Intervenção no texto do primeiro CEDN, da responsabilidade de Mário Soares e Mota Pinto (alínea a do n.º2 do III capítulo).
Por sua vez, o CEDN de 1994, da responsabilidade de Cavaco Silva e Fernando Nogueira, menciona como orientação para as estratégias gerais no plano político interno, “desenvolver as capacidades criadoras e produtivas nacionais num quadro de interdependência económica e financeira internacional, por forma a reduzir tanto quanto possível as fontes de vulnerabilidade em sectores estratégicos da economia” (alínea e do n.º 2 da Parte 3).
Mas já desde Adelino Amaro da Costa que a questão económica é vista como vector fundamental da defesa nacional: “Os conceitos mais divulgados e mais partilhados de Defesa Nacional alargada ou ampliada, ou na terminologia do programa do Governo, de concepção global integrada de Defesa Nacional, conduzem a que vectores fundamentais de um esforço de Defesa Nacional sejam a política externa, o vector militar e a política de desenvolvimento económico” (entrevista a O Jornal, em 22 de Fevereiro de 1980, in Escritos de Governo, Lisboa, IDL, 1981, p. 50).
Mais recentemente, Jorge Sampaio referia que “a Defesa, sendo uma questão nacional, é não apenas militar mas também cultural, económica e política na mais ampla acepção da palavra. Neste sentido, só uma estratégia integrada, concebida no plano global do Estado, poderá responder, com credibilidade, à defesa dos interesses nacionais e aos desafios do mundo de hoje, pelas sinergias que se obterão através de uma adequada e harmoniosa articulação entre as componentes militar e não militares da Defesa Nacional” (in A Defesa Nacional e as Forças Armadas Intervenções do Presidente da República, Lisboa, Presidência da República, 2002, p.29).
Sendo certo que os anteriores Conceitos, embora tenham contemplado textualmente a problemática económica, não contribuíram de facto para alterar duradouramente a situação de dependência económica do país, isso não poderá servir de eventual argumento para eliminar pura e simplesmente o vector de desenvolvimento económico do CEDN, como se verificou na sua nova versão, saída do governo PSD/CDS, sob a batuta do Ministro de Estado e da Defesa Nacional Paulo Portas.
A persistência cíclica de acentuados desequilíbrios nas contas externas não pode deixar de alimentar a situação fortemente desconfortável existente no campo da soberania nacional, não devendo por conseguinte passar despercebida numa nova versão do CEDN, que se impõe para a indispensável reposição da autonomia económica.
Já em 1987, Miguel Cadilhe apontava que “a correcção duradoura do défice externo exige o reforço da indústria nacional vocacionada para o mercado dos bens transaccionáveis internacionalmente. E isso passa pela alteração da estrutura produtiva industrial, no sentido da elevação dos níveis de competitividade, do alargamento da gama de produções e dos mercados externos e do desenvolvimento das capacidades tecnológicas e científicas nacionais” (in Estratégia de Progresso Controlado ‘PCEDED – Programa de Correcção Estrutural do Défice Externo e do Desemprego’), Lisboa, Ministério das Finanças, 1987, vol. I, p. 32).
Está provado, porém, que o problema não se resolve consistentemente apenas pela concessão conjuntural de benefícios fiscais ou outros. Quer o CEDN de 1985, quer o de 1994, aludem a sectores estratégicos da economia mas estes nunca foram definidos, sendo que esta definição não pode deixar de ser entendida como uma questão central da defesa nacional.
Por outro lado, sem a definição dos sectores estratégicos, por muito boa que seja a negociação de contrapartidas aquando da aquisição de equipamento para as Forças Armadas, não é possível retirar efeitos positivos significativos e estáveis, numa perspectiva de desenvolvimento sustentado da economia nacional.
A definição dos sectores estratégicos da economia nacional contribuirá igualmente para a não menos urgente concretização do que se designa por interesses nacionais. De resto, não é suposto conhecermos bem as ameaças sem sabermos previamente quais são os interesses nacionais que podem ser ameaçados.
Neste quadro, sectores estratégicos são os que concebem, produzem e comercializam bens de elevado valor acrescentado gerado e retido no país, dirigidos a mercados externos em crescimento ou à substituição de importações, sectores esses cujos centros de decisão sejam dominados por portugueses.
Quanto aos interesses nacionais e segundo Loureiro dos Santos, eles “são os alvos das ameaças que contra nós se dirigem. Não seria necessário defendê-los, se não fossem ameaçados. Quando se diz ‘garantir ou defender interesses’, estamos a utilizar uma forma abreviada de afirmar ‘garantir que os interesses fiquem incólumes face às ameaças’”. (Ameaças – Fulcro da concepção estratégica, in Jornal Público, 30 de Agosto de 2002).
Actualmente como no passado, os interesses nacionais são os que podem garantir a sobrevivência e o desenvolvimento da nação, desde logo do ponto de vista económico, sendo que, de acordo com João Ferreira do Amaral, “o futuro a longo prazo de uma economia está dependente do crescimento da sua produção de bens transaccionáveis” (Cf. cit. Ant., p. 29).
Os interesses nacionais têm, portanto, a ver com os sectores estratégicos da economia nacional e, consequentemente, com os mercados onde os bens transaccionáveis produzidos nesses sectores podem ser colocados.
No documento dos EUA congénere do nosso CEDN, estabelece-se que a missão das Forças Armadas dos Estados Unidos é proteger e fazer progredir os interesses nacionais, sendo que, entre os diversos interesses aí mencionados, se encontra o acesso a “key markets” (separadamente do acesso aos recursos estratégicos).
De facto, de acordo com o documento do Departamento de Defesa, “the purpose of the U.S. Armed Forces is to protect and advance U.S. national interests and, if deterrence fails, to defeat threats to those interests”.
Não é esta a ocasião para ser apreciada a relação de causa e efeito entre o papel da Forças Armadas americanas na implementação do objectivo 'to protect and advance U.S. national interests' e a prosperidade dos Estados Unidos.
Mas numa lógica similar, e por maioria de razão dada a grande vulnerabilidade da economia portuguesa, os mercados dos sectores estratégicos nacionais devem ser declarados -nomeadamente em termos de defesa nacional e de missão das Forças Armadas- como mercados vitais para o país.
O entrosamento das Forças Armadas com os interesses nacionais reflecte afinal toda a história de Portugal até à revolução de 1974 que, impondo a retirada de África, marca a perda da última grande fonte de riqueza externa.
A reactivação desse entrosamento -na perspectiva de que o nosso desempenho, agora já sem contrapartidas, como povo historicamente solidário com tantos povos, em tantas regiões do mundo, não pode relegar para segundo plano a nossa própria base de sustentação económica -, permitirá que voltemos a acreditar e, assim, reanimar a esperança na melhoria do padrão de vida dos portugueses.
Ora, sendo o Presidente da República também o Comandante Supremo das Forças Armadas, não tem competências suficientes para programar e executar a sua acção nesse sentido?