segunda-feira, agosto 22, 2005

magister dixit / FILOSOFIA

O desenvolvimento da minha filosofia aconteceu como segue: a minha mulher, tendo-me convidado para provar o seu primeiro soufflé, deixou cair uma colher dele no meu pé, fracturando vários ossinhos. Chamaram-se os médicos, tiraram-se e examinaram-se as radiografias e mandaram-me ir para a cama durante um mês. Durante a convalescença virei-me para as obras de alguns dos mais formidáveis pensadores da sociedade ocidental - um monte de livros que eu tinha posto de parte exactamente para uma destas eventualidades. Desprezando a ordem cronológica, comecei com Kierkegaard e Sartre, depois saltei rapidamente para Espinosa, Hume, Kafka e Camus. Não me chateei, como temia que acontecesse; pelo contrário, fiquei fascinado pela alacridade com que essas grandes inteligências abordavam sem tergiversar a moral, a arte, a ética, a vida e a morte. Lembro-me da minha reacção perante uma observação tipicamente luminosa de Kierkegaard: "Uma tal relação que se relaciona a si consigo mesmo (quer dizer, com o Eu) tem de se ter constituído a si própria ou ter sido construída por outrem." O conceito fez-me vir as lágrimas aos olhos. Palavra de honra - pensei, como ele é inteligente! (Eu sou um tipo que tem dificuldades em escrever duas frases intelegíveis sobre 'O dia que passei no Jardim Zoológico'). Na verdade, a passagem era totalmente incompreensível para mim, mas que importava se Kierkegaard se tinha divertido a escrevê-la? Acreditando, de repente, que a metafísica era o trabalho que sempre desejara fazer, peguei na caneta e comecei de imediato a anotar a primeira das minhas próprias meditações. A obra desenvolveu-se com presteza, e no espaço de duas tardes - com um intervalo para uma soneca e para tentar meter umas bolinhas nos olhos do urso - completei a obra filosófica que desejo não seja revelada antes da minha morte ou até ao ano 3000 (o que acontecer primeiro) e que, modestamente, acredito que me assegurará um lugar de destaque entre os mais valorosos pensadores da História.
(Woody Allen, 'Para acabar de vez com a cultura', Lisboa, Bertrand, 1980, pág. 31)