quarta-feira, agosto 24, 2005

magister dixit / O POVO MAIS VELHACO DA TERRA



O que há de singular é que os Chineses, cuja vida é inteiramente dirigida pelos ritos, sejam, apesar disto, o povo mais velhaco da terra. E isto se percebe principalmente no comércio, que nunca lhes pôde inspirar a boa fé que lhe é natural. Aquele que compra, deve levar consigo a sua própria balança; cada negociante, possuindo três, costuma usar uma forte para comprar, outra leve para vender, e uma justa para aqueles que estiverem prevenidos. Julgo no entanto poder explicar esta contradição.
Os legisladores da China tiveram dois objectivos: quiseram que o povo fosse submisso e tranquilo, e que fosse laborioso e industrioso. Devido à natureza do clima e do solo, ele vive uma vida precária; não se pode ali assegurar a própria existência, senão com o esforço da indústria e do trabalho.
Quando todo o mundo obedece, e quando todos trabalham, o Estado permanece numa feliz situação. Foi a necessidade, ou talvez a natureza do clima, que deu a todos os Chineses uma avidez inconcebível pelo ganho; as leis não puderam pensar em refreá-la. Tudo ali foi proibido, sempre que foi questão de adquirir pela violência: tudo foi permitido, quando se tratou de obter mediante artifício ou indústria. Não comparemos, pois, a moral dos Chineses com a da Europa. Cada qual teve de se mostrar atento, na China, àquilo que lhe podia ser útil: se o velhaco velou pelos seus interesses, aquele que se tornou sua vítima, deveria velar duplamente pelos seus. Na Lacedemonia, era permitido roubar; na China é permitido enganar.
(Montesquieu, 'Do Espírito das Leis', Explicação de um paradoxo sobre os Chineses, S. Paulo, Brasil Editora, 1960, Livro Décimo Nono, Cap. XX, pág. 351)